“Saí desta morada que se chama O Coração Perdido
e de repente não existi mais, perdi meu ser.”
Mário de Andrade
Em sua obra literária, suas cartas e entrevistas, Mário de Andrade (1893-1945) citou inúmeras vezes a casa e a rua em que morava na cidade de São Paulo, no bairro da Barra Funda. A rua Lopes Chaves tornou-se emblemática, a ponto de até mesmo os motoristas de bonde da região saberem que era ali que morava o escritor.
Apesar da proeminência do endereço, Mário de Andrade nasceu numa casa da rua Aurora, no Centro de São Paulo, que pertencia ao avô materno, Joaquim de Almeida Leite de Morais (1834-1895), morada onde também residiam tias e primos. De lá, a família se mudou para um sobrado de esquina no Largo do Paiçandu, construído pelo pai de Mário, Carlos Augusto Pereira de Andrade (1855-1917).
Com a morte de Carlos Augusto, a mãe, Maria Luísa de Almeida Leite Morais, a Dona Mariquinha (1859-1949), vendeu o casarão na região central e comprou três sobrados geminados em um bairro considerado periférico na época, nas bordas de Higienópolis, Santa Cecília, Bom Retiro e Campos Elíseos: a Barra Funda.
A ideia era que a casa de esquina, a maior, ficasse para ela, a irmã Ana Francisca Leite Morais (1862-1947), conhecida como Nhanhã, e a filha Maria de Lourdes de Morais Andrade (1901-1989). A segunda casa, do meio, seria cedida ao filho Carlos de Morais Andrade, já casado, o que de fato aconteceu. E a terceira ficaria para Mário de Andrade.
Mário, no entanto, nunca se mudou para a terceira casa. Entre 1921 e 1945, ele viveu, amadureceu e morreu no sobrado da esquina, junto da mãe, da irmã, da tia e da empregada e cozinheira Sebastiana de Campos (1893?-1970), que trabalhou ali dos anos 1920 até morrer de infarto, na cozinha da própria residência, em 1970.
O sobrado em si era simples, uma construção para uma família de renda média, com projeto em estilo eclético do arquiteto Oscar Americano de Caldas, pai do engenheiro e colecionador Oscar Americano Filho, que teria sua própria residência no bairro do Morumbi transformada em casa-museu, a Fundação Maria Luísa e Oscar Americano.
A planta original, de 1920, hoje sob a guarda do Arquivo Histórico Municipal de São Paulo, mostra uma divisão bem definida dos cômodos entre a área social, no piso térreo, próxima à entrada; a área de serviço, nos fundos; e a área íntima, dos dormitórios, no primeiro andar.
Essa era uma configuração típica das "casas modernas", do fim do século XIX até a primeira metade do século XX. Aliado a uma nova infraestrutura urbana e inspirado em modelos estrangeiros, primeiro adotados pela elite em seus palacetes e depois pelas classes médias, esse novo modelo de moradia se contrapôs ao modelo colonial, caracterizado por ambientes amplos, praticamente sem divisão de cômodos, em que o mundo social e o mundo do trabalho se misturavam.
A partir da planta de 1920, dos textos de Mário de Andrade e de entrevistas e depoimentos de pessoas ligadas a ele – em especial, a prima de segundo grau, Gilda de Mello e Souza (1919-2005), que viveu na casa, junto de seus irmãos, entre 1931 e 1943 –, é possível traçar uma história da casa e da vivência do ilustre morador em cada um de seus ambientes.
Mário nos cômodos da Lopes Chaves
Térreo
Hall de entrada
Hall de entrada hoje. Foto: André Hoff
Depois de atravessarem o portão e o pequeno jardim da frente – com roseiras, alamandas e manacá cuidados diariamente pela Dona Mariquinha, mãe de Mário de Andrade –, os visitantes passavam pelo alpendre e adentravam o hall, também conhecido como vestíbulo.
Ainda presente nesse espaço da casa, o móvel com espelho e compartimento para guarda-chuva fazia par com outro que ficava na parede em frente. Nas prateleiras dessas duas estantes, Mário de Andrade guardava livros de “literatura de vanguarda”, apresentando, a quem chegava, seu gosto modernista. O piso de ladrilhos está no hall desde a construção, em 1920.
Gilda de Mello e Souza registrou uma lembrança desse espaço.
“Tenho a impressão de que ouço o barulho da chave na fechadura e vejo Mário entrar no vestíbulo, como costumava fazer quando vinha da rua: empurrando o chapéu para o alto da cabeça, a fim de que a calva não recebesse de repente a rajadinha de ar fresco.”
Boa parte dos visitantes que chegava à casa em busca de uma conversa com Mário de Andrade não conhecia muito além do vestíbulo no piso térreo da casa. Dali, subiam as escadas em frente e chegavam ao estúdio, no primeiro andar, onde ele recebia todos que o procuravam, dos alunos e amigos mais próximos a jornalistas e aspirantes a escritor.
Saleta do piano
Saleta do piano hoje. Foto: André Hoff
Ao lado do vestíbulo, essa sala tinha, no projeto original da casa, a função de escritório. Mas, logo ao se mudar, Mário de Andrade criou seu estúdio de trabalho naquele que seria seu dormitório, no primeiro piso, e transformou a saleta do térreo em um espaço para dar suas aulas particulares de piano.
Ali, instalou o piano-armário com candelabros, datado do século XIX, que provavelmente pertencera à mãe e à tia dele. E criou os móveis de acordo com o espaço e o tema musical. Assim, o banco com assento para duas pessoas – Mário e o aluno da vez – funcionava como um baú, com compartimentos internos para a organização das partituras.
A estante em L, que abraça a pequena sala, foi projetada por ele com cabideiro e um banco embutido, sob a janela. Embaixo deles, havia também nichos para a guarda de livros e partituras. Em carta à amiga Anita Malfatti, em 9 de fevereiro de 1927, Mário contou um pouco da encomenda desse móvel:
“O caso é que minha casa estava caindo! Caindo também é mentira. Porém um amigo meu que veio aqui vendo como a casa é feita de carregação ficou apavorado com o mundão de livros e de estantes pesadas do primeiro andar e me falou que tomasse cuidado porque com a casa feita daquele jeito, o soalho era bem capaz de ceder. Eu é que fiquei apavorado d’aí. Não descansei enquanto não mandei fazer uma biblioteca na saleta de baixo pra passar parte dos livros. Ficou uma lindezinha, sem luxo nenhum porém assim envernizada e tomando a saleta toda, com os bancos saindo das próprias estantes e com lugar pras músicas por debaixo deles até parece casa de gente rica, palavra.”
Oneyda Alvarenga, que foi aluna de piano de Mário de Andrade e se tornou amiga estimada, deu detalhes sobre a saleta, o primeiro cômodo a que foi apresentada quando conheceu a casa - ainda que tenha se esquecido da escultura do Cristo de trancinhas, de Brecheret, que ficava sobre o piano.
“Entrei na salinha que ficava à direita do pequeno vestíbulo ladeado de estantes e abria a frente para a escada que conduzia ao porão. Essa salinha [...] também era revestida de estantes, que só um piano-de-armário e a porta impediam de fecharem o retângulo. Na maior abria-se um vão para um banco que fazia corpo com ela. Acima do piano tomava a parede e os olhos um grande retrato de Beethoven, gravura de que incrivelmente nunca procurei saber o autor e nunca deixei de cobiçar secretamente. Em cima estava um bando de objetos, um mundo de badulaques, me pareceu. Minha memória só me restitui um Buda de porcelana, um relógio (seria mesmo?) esférico, de vidro grosso e metal amarelo. [...] No piano antigo, de castiçais na caixa, de teclado amarelo sempre aberto durante todo o tempo de meu convívio com Mário, toquei então pela primeira vez. (Bem depressa passaria, satisfeitíssima, para o grande Steinway de cauda, da sala de visitas.”
Sala de estudos
Sala de estudos hoje. Foto: André Hoff
Também conhecido como “sala do telefone”, por acomodar o único aparelho da casa, esse cômodo costumava ser usado pelos primos que, na década de 1930, vieram de Araraquara para morar no sobrado e estudar em São Paulo. Havia ali uma escrivaninha que Gilda de Mello e Souza usava para estudar enquanto vivia com a família de Mário.
Assim como quase todos os ambientes da casa, a sala de estudos também acomodava uma das estantes carregadas com o gigantesco acervo de livros de Mário de Andrade. A importância desses móveis era tão grande que esse cômodo chegou a ser reformado para se adaptar à biblioteca desenhada por ele.
A porta que existia na parede que dava para o corredor foi fechada para que a estante tivesse uma base maior de apoio. Na parede ao lado, sob a escada do hall, Mário abriu uma outra porta que, pela estrutura da casa, teve de ficar mais baixa e mais estreita que as demais. Segundo a lembrança de seus sobrinhos, com mais de 1,90 metro de altura, ele quase sempre batia a cabeça no batente ao correr para atender ao telefone da sala.
A presença imponente da estante na sala de estudos escondeu e protegeu por décadas a pintura original da parede que, colorida e cheia de detalhes, foi descoberta por acaso no início da década de 2010 por um funcionário da Casa Mário de Andrade. Em 2015, o tampo do fundo do móvel foi retirado para deixar essa decoração visível.
Sala de visitas e sala de jantar
A sala multiuso, hoje usada para eventos, palestras e cursos, funciona no espaço das antigas salas de visitas e de jantar.
Foto: André Hoff
Um hall com cadeiras e mesinha dividia a sala de visitas da sala de jantar, ambas fechadas com portas francesas. Na primeira, voltada para a Lopes Chaves, ficava o piano de cauda Steinway, cobiçado pelas alunas de Mário de Andrade que, ao adquirirem certa habilidade, passavam a ter aulas nele, como em uma promoção.
Com o tempo, ambas as salas foram sendo invadidas pela vasta coleção de pinturas, livros, esculturas e objetos de arte popular de Mário, que não parou de crescer até o fim de sua vida. Na sala de jantar, Gilda de Mello e Souza se lembrou de que, em certo momento, “[...] a grande paisagem de Rebolo e as diversas naturezas mortas, de Anita, de Gobbis, de Enrico Bianco, expulsaram a modesta ceiazinha do Senhor em baixo relevo”.
A reprodução em metal da Santa Ceia ficou, por longo período, logo acima do bufê de madeira, sobre o qual se apoiava uma imponente fruteira de prata com o monograma do pai de Mário, Carlos Augusto de Andrade. Ali, também não ficava uma compoteira, sempre abastecida com um cotidiano doce de batata-doce.
Ao redor da mesa, no centro da sala, se passavam cenas familiares que inspiraram Mário a escrever o conto "O peru de Natal". Em um dos trechos, o narrador Juca assume a função antes atribuída à mãe, de distribuir as fatias da ave à tia e aos irmãos. Ele a surpreende ao reservar para ela o primeiro e mais recheado prato, no esforço de retribuir os longos anos em que a mãe se importara mais com a família e com o pai - agora morto - do que com ela mesma.
“– Eu que sirvo!
‘É louco, mesmo’ pois por que havia de servir, se sempre mamãe servira naquela casa! Entre risos, os grandes pratos cheios foram passados pra mim e principiei uma distribuição heróica, enquanto mandava meu mano servir a cerveja. Tomei conta logo de um pedaço admirável da ‘casca’, cheio de gordura e pus no prato. E depois vastas fatias brancas. A voz severizada de mamãe cortou o espaço angustiado com que todos aspiravam pela sua parte no peru:
– Se lembre de seus manos, Juca!
Quando que ela havia de imaginar, a pobre! que aquele era o prato dela, da Mãe, da minha amiga maltratada, que sabia da Rose, que sabia meus crimes, a que eu só lembrava de comunicar o que fazia sofrer! O prato ficou sublime.
– Mamãe, este é o da senhora! Não! não passe não!
Foi quando ela não pode mais com tanta comoção e principiou chorando. Minha tia também, logo percebendo que o novo prato sublime seria o dela, entrou no refrão das lágrimas.”
Em carta a Henriqueta Lisboa, de março de 1942, antes de publicar "O peru de Natal", Mário contou a ela que havia de fato assumido o posto de servir as refeições da família, no lugar da mãe, já velhinha. Afirmou: “A epistolomania foi interrompida pelo almoço de família, melhorado está claro. Eu que sirvo, porque Mamãe está velhinha, nos seus 84 anos em curso, treme demais, coitada”.
Ao redor da mesa de jantar, além de compartilhar a comida com a família, Mário era conhecido por pregar peças, fosse espirrando lança-perfume na perna dos sobrinhos pequenos, fosse colocando a mãe contra a tia ao levantar qualquer disputa entre as duas. Antonio Candido, então noivo de Gilda de Mello e Souza, lembrou de um encontro em que
“Mário falou que estava aborrecido consigo mesmo, porque durante o almoço tinha feito a brincadeira usual de espicaçar a mãe contra a tia; depois, quando as coisas azedaram, ficara como sempre do lado desta, a parte mais fraca, e acabara sendo desagradável com a mãe. ‘Não sei por que faço isto’, disse ele. E completou: ‘Complexo de Édipo não é, porque já me autoanalisei…’”.
Cozinha e sala de costura
A área de serviço da casa ficava nos fundos do piso térreo. Foto: André Hoff
Nos fundos do piso térreo ficava a área de serviço, reservada ao trabalho doméstico realizado, quase sempre, pelas mulheres. Esse setor diferenciava-se dos demais até mesmo por sua estrutura: em vez de assoalho de peroba, tinha ladrilhos cerâmicos no piso; em vez de paredes pintadas, revestimento parcial de azulejos.
A cozinha tampouco possuía forro, para que a quentura e a fumaça produzidas pelo fogão a lenha ou carvão encontrassem mais espaço para se dissipar. Da porta, uma escada dava acesso ao quintal e ao tanque de lavar roupa. Dentro da cozinha, havia ainda um estreito quarto de empregada, vizinho de um pequeno banheiro. Aí, podem ter vivido algumas das trabalhadoras que chegaram a atuar na casa. Sabe-se, no entanto, que a mais conhecida delas, Sebastiana de Campos, usava esse espaço como vestiário e quarto de descanso, uma vez que morava, com o marido, na vizinhança.
No início do século XX, contar com o serviço de uma empregada era algo comum, encarado, tacitamente, como uma regra social. O valor irrisório pago a essas mulheres, tão pequeno quanto o valor dado a uma profissão que, poucas décadas antes, era exercida por escravizadas e escravizados, permitia que mais de uma trabalhadora fosse contratada, inclusive em casas de classes baixas e médias, como a da família de Mário.
Antes de se mudarem para a casa da Lopes Chaves, a mãe e a tia de Mário de Andrade trabalharam “para fora” por um período significativo, o que mostra o poder aquisitivo mediano da família (entre as elites, o trabalho das mulheres fora de casa era visto como desnecessário e desonroso). Dona Mariquinha foi costureira e, depois, ao lado da irmã, Dona Nhanhã, se tornou uma reconhecida doceira, fazendo encomendas para eventos da alta sociedade.
Na área de serviço do sobrado da Barra Funda, as duas nunca deixaram de trabalhar. Na cozinha, ao lado de Sebastiana de Campos, seguiram fazendo doces tradicionais – bons-bocados, amanteigados, sonhos, pãozinho de minuto, sequilhos e biscoitos – que Mário adorava e que também eram servidos nas reuniões que aconteciam em seu estúdio, no primeiro andar.
Nas noites de terça-feira, por um período da década de 1920, eram os “doces tradicionais brasileiros” e o “alcoolzinho econômico” que acompanhavam esses encontros. Em 1923, quando estava em Paris, o então amigo Oswald de Andrade chegou a escrever para Mário que “assistir no Vieux Colombier La nuit des rois de Shakespeare é melhor que filar aqueles sábios biscoitos domésticos das tuas intelectuais terças-feiras, juro que é”.
Além do preparo de doces, compartilhado com Mariquinha e Nhanhã, Sebastiana se dedicava à comida do dia a dia. Nunca faltavam as sopas no início do almoço e do jantar e as delícias de um cardápio bastante caipira, com feijão virado, lombo de porco, paçoca de carne no pilão, doce de batata-doce e uma famosa empadinha, preferida de Mário. Segundo o registro de Gilda de Mello e Souza,
“E havia ainda na casa a fiel Sebastiana, mestre-cuca extraordinária, orgulhosa dos patrões ilustres que já tinha servido. Os peixes, aprendera a fazer com o dr. Vicente de Carvalho; as demais carnes e a famosa empadinha, que ela designava pelo nome de ‘ramequer’, com o dr. Silvio de Campos. Na Lopes Chaves experimentara várias receitas fornecidas por Mário e algumas sobremesas que ele inventara, procurando tirar partido do paladar delicadíssimo de certas frutas do Norte.”
Conjugada à cozinha, a sala de costura era local de intenso trabalho de Nhanhã e Mariquinha. No espaço, havia uma mesa central, de pés torneados, e uma mesinha de canto, de pau-ferro, sobre a qual Mário costumava deixar os livros que trazia da rua. Na época, os exemplares vinham com as folhas “fechadas”; era preciso abri-las delicadamente, uma tarefa que era realizada com cuidado pela mãe e pela tia de Mário.
No entanto, o principal trabalho realizado na sala era, como se imagina, o de costura. A mãe confeccionava todo o tipo de roupa para a família e também os robes, roupões de seda que Mário costumava usar em casa, sobre as camisas. A tia tricotava as malhas que o sobrinho idealizava, por vezes com desenhos geométricos que exigiam a atenção dela no cálculo dos pontos e na combinação das diferentes cores de lã.
Os tricôs de Nhanhã eram tão famosos que Mário de Andrade os usava para presentear os amigos mais próximos e os mencionou em Macunaíma. No capítulo “Ci, Mãe do Mato”, o narrador elenca os mimos oferecidos ao bebê de Ci e Macunaíma, em uma possível alusão aos presentes dos reis magos ao menino Jesus. Mas, no lugar de incenso, mirra ou ouro, “mandaram buscar pra ele em São Paulo os famosos sapatinhos de lã tricotados por dona Ana Francisca de Almeida Leite Morais”.
Primeiro andar
Estúdio
Entrada do estúdio. Foto: André Hoff
Embora o primeiro andar de sobrados como o de Mário de Andrade fosse geralmente reservado aos aposentos, uma área restrita aos moradores, na Lopes Chaves era diferente. Mário mudou para o primeiro andar o eixo de sua vida social: naquele que seria seu dormitório, instalou seu escritório, o estúdio, como chamava; e naquele que seria o espaço de um closet, montou seu minúsculo quarto.
Para o estúdio, convergiam seus alunos de piano, seus colegas artistas e escritores, seus amigos íntimos; de lá, ele mesmo se projetava para o mundo, por meio de suas cartas, suas criações literárias e seus projetos culturais. Dentro dele, sua imensa coleção de pinturas, imagens sacras, livros e objetos de valor etnográfico compunham o cenário com os móveis de imbuia, desenhados por ele.
Divã, com nichos sobre o assento para guardar livros (Acervo IEB-USP).
Foto: André Hoff
Havia espaço para uma mesa redonda, uma cômoda, duas poltronas, um divã e um “oratório”, um móvel inspirado em um “armário de quarto feminino” que ele havia visto em um dos exemplares que assinava da revista alemã Deutsche Kunst und Dekoration.
Embora tenha tido a intenção de desenhar, a partir daquele modelo, um porta-bibelô, Mário acabou criando um oratório ao dedicá-lo à específica guarda de sua imaginária sacra. Curiosamente, no mesmo móvel, embaixo das portas de vidro, mantinha escondido um bar com bandeja retrátil, dentro do qual acomodava as bebidas que servia nas festivas reuniões de amigos.
O oratório-bar (acervo IEB-USP). Foto: André Hoff
Além dos móveis “novos”, quase sempre equipados com nichos para acomodar seus livros (até mesmo as poltronas têm compartimentos para publicações em seus braços), o estúdio também tinha um harmônio, um instrumento de teclas similar a um órgão que Mário tocava até tarde da noite. E a escrivaninha-estante, herdada do pai, posicionada ao lado da mesa com a máquina de escrever que ele batizou de Manuela em homenagem ao amigo Manuel Bandeira.
Como registrou seu antigo secretário José Bento Faria Ferraz, todos os dias, a partir das 7 e meia da manhã, de banho tomado, vestindo seu famoso robe de cetim, Mário se sentava para trabalhar. Enquanto escrevia, fumava muito. Tinha quase 30 cinzeiros só no estúdio, alguns deles embutidos nas poltronas projetadas por ele.
A poltrona com cinzeiro e espaço para livros nos braços (Acervo IEB-USP).
Foto: André Hoff
Por ali, muita gente passou em busca da convivência com Mário de Andrade. Seus alunos do Conservatório Dramático e Musical, seus colegas do Departamento de Cultura, seus amigos da vida, Luís Saia, Rubens Borba de Moraes, Tarsila do Amaral, Anita Malfatti. Ex-aluna de piano, colega de trabalho e amiga íntima, Oneyda Alvarenga se lembrava do chá que tomavam no estúdio:
“Lá pelas 16:30 horas, D. Mariquinha (a mãe de Mário) fazia subir um sublime chá acompanhado duns sublimes doces feitos pela Sebastiana, a fiel cozinheira da família, de quem guardo comovida lembrança. A hora do chá era de recreio: batíamos papo sobre nossos trabalhos e não sei que mais. Já na primeira quarta-feira de reunião ficamos sabendo que o chá custava 120$000 a lata – uma fortuna! – e que chá exigia um ritual para ser bebido: o requintado professor acendeu as luzes e fechou as venezianas. Era assim que o tomávamos sempre.”
Carlos Drummond de Andrade foi um dos poucos amigos que nunca esteve lá. Mas Mário imaginava como seria a visita dele, em uma carta escrita ao amigo em 11 de fevereiro de 1945, alguns dias antes de morrer:
“Depois vínhamos pra esta sala de trabalho, gosto dela sabe, é meu retrato alindado, como os dos fotógrafos, parece comigo mas é cem vezes mais bonita. Mas não é feita pra inglês ver, se vive nela, e ficávamos assim no largado que-fazer da intimidade”
Na carta derradeira, Mário de Andrade se reconhecia no estúdio. Mas aquele espaço era muito mais do que um retrato, uma imagem estática, para ser contemplada. Mário havia criado o estúdio, o decorado, disposto ali com capricho e ordem suas peças artísticas, religiosas e folclóricas mais estimadas. Mas o estúdio também criou Mário. Criou sua identidade conectada à casa, à Lopes Chaves, a São Paulo. Constituiu, por meio do sincretismo de objetos, suas 350 facetas e sua visão múltipla da diversidade que associava à cultura brasileira. Os livros, as correspondências, os objetos, os quadros, os móveis materializavam, no estúdio, a coleção e o colecionador. Nas palavras de Gilda de Mello e Souza,
“está ali, bem protegido, o mundo de que necessita: dócil, ordenado, ao alcance da mão e do olhar. [...] pois Mário não acumulou visando o lucro, como um marchand, ou o status, como um novo-rico, mas para chegar mais perto do Homem e do mundo. Para que um dia, olhando a coleção, ele se reconhecesse, pudesse refazer o grande puzzle de sua vida, de sua época. O colecionador descansa na coleção.”
Fora de casa, sem as coleções, sem os livros, Mário de Andrade confessou a Pio Lourenço Corrêa que se sentia “amputado, desmusculado, intelectualmente anêmico”. As coleções, os livros, seus objetos eram, assim, partes não só de uma identidade simbólica, mas extensões de seu corpo, sem as quais o poeta-pesquisador-músico-colecionador... se sentia verdadeiramente mutilado.
Não à toa, quando se mudou para o Rio de Janeiro em 1938, depois de ter sido afastado da gestão do Departamento de Cultura em São Paulo, Mário quis levar para lá – e levou – uma parte das coisas do estúdio da Lopes Chaves. Mas as coisas sem o estúdio e sem a casa não lhe supriram os “membros” perdidos. Durante todo o período em que esteve na então capital do país, nutriu o desejo de retornar à casa da Lopes Chaves. E retornou, em 1941.
Quarto do Mário
Corredor de quartos no primeiro andar. Foto: André Hoff
Originalmente projetado para ser uma espécie de closet contíguo a um dormitório, esse espaço se transformou no quarto de Mário de Andrade, enquanto o vizinho virou seu estúdio de trabalho. Uma parede com porta dividia os dois ambientes. Pequeno, com um armário, um lavatório, uma cama de solteiro, uma mesa de cabeceira e uma vitrola, o quarto chegou a ser comparado a uma cela de monges na descrição que Oneyda Alvarenga fez da noite de 25 de fevereiro de 1945, quando Mário teve um infarto e morreu em sua cama:
“Não sei contar como foram depois, na Lopes Chaves, o estranho barulho, os desesperados toques de sineta e os chamados vindos lá de cima, na noite expectante. Como vi Mário estendido de costas, no sentido da largura da cama, em seu quarto tão despojado que mais parecia uma cela monástica, e em que eu pela primeira vez entrava. Como cheguei à sua boca com meu espelhinho de bolsa, para saber se ele ainda respirava. Como pus minha mão na sua testa ainda quente, único gesto físico de ternura só acontecido quando acabara de findar-se uma longa convivência fraterna.”
Quarto de Dona Mariquinha
Ao lado do quarto de Mário de Andrade, estava o quarto em que dormia a mãe dele, Maria Luísa, a Mariquinha. Em frente, ficavam o banheiro e o dormitório da tia Ana Francisca, a Nhanhã, madrinha de Mário, que morou com a família por toda a vida.
Terraço
Segundo a planta original do sobrado da Lopes Chaves, o dormitório em que se instalou Maria Luísa, mãe de Mário, tinha um pequeno terraço. Por volta da década de 1940, no entanto, quando uma reforma eliminou a telha vã e deu forro à cozinha no piso térreo, foi possível ampliar, sobre ela, o espaço dessa varanda.
Mais espaçoso, o novo terraço passou a ligar, internamente, os quartos de Mariquinha e de sua irmã, Nhanhã, que ficava logo em frente. Com plantas e bancos, tornou-se uma área de descanso que, hoje, depois da última reforma, foi transformada na sala de administração do museu-casa.
Texto: Viviane Soares Aguiar
Os móveis que aparecem aqui integram a Coleção de Artes Visuais do IEB-USP e foram emprestados ao museu Casa Mário de Andrade por ocasião da exposição Estúdio de uma Vida, em cartaz entre 11 de maio e 04 de agosto de 2024.